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Eu, Marília, não sou algum vaqueiro
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sois queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

 

Assim começa Tomás António Gonzaga o poema “Marília de Dirceu”, publicado em Lisboa em 1792, quando a sua visão nostálgica – e deliberadamente errada, a partir do facto de o desenvolvimento do comércio no Mar Egeu e no Mediterrâneo ter levado à edificação e expansão concomitantes de cidades nas suas margens e nos estuários ou deltas dos seus rios – de prosperidade e dos encantos do campo, já tinha desaparecido da maioria das cabeças europeias há pelo menos um século. Em 1971, na busca de título para um livro em inglês que ia publicar, fui procurar numa concordance de Shakespeare (concordances são obras que enumeram e arrumam o uso de certas palavras pelo autor a que se dedicam) empregos da palavra camponês ou camponeses (peasant, peasants) pelo Bardo. O resultado foi mais do que um desapontamento; foi quase uma vergonha. Não me lembro literalmente de todas as passagens citadas que eram, de resto, poucas – e não tenho, onde escrevo agora, uma concordance de Shakespeare à mão – mas o teor do que me ficou é ainda hoje deprimente: “Cala-te, camponês burro!”, “Bruto e tosco como um camponês”, “Camponês pobre, sujo e sem maneiras” e por aí fora. Reinvento de memória, por assim dizer, mas não há, na obra inteira de Shakespeare, verso em nome do autor ou frase na boca de personagem que vá muito acima desse desdém brutal. (O meu livro acabou por se chamar, prosaicamente, A Portuguese Rural Society.)
     O autor de “Marília de Dirceu” pertencia, se a classificação que aprendi no liceu sobreviveu à evolução do estudo da literatura portuguesa, à escola “setecentista, arcádica ou francesa”; daí, talvez, o seu gosto pela pastoral e a idealização obrigatória do campo. O que se inscreveria, de toda a maneira, no desfasamento entre Portugal e latitudes mais ao Norte, desde o estabelecimento da Inquisição até ao século XIX, com curto interregno quando o Marquês de Pombal governou. Para dar um exemplo: quando o aqueduto das Águas Livres foi construído para levar água a Lisboa – o primeiro projecto vinha de 1731 e a obra acabou em 1748 – já se conhecia na Europa o princípio dos vasos comunicantes.
     Na visão ideal reflectida no texto de Gonzaga, não só o campo era próspero e belo, como os seus habitantes eram repositório de virtudes. Essa noção de superioridade moral levou ainda mais tempo a ser esquecida pela sabedoria das nações mas acabou por desaparecer também. Consanguinidade, analfabetismo, superstição foram dando mau nome às berças. Fora de florestas majestosas, protegidas ou a proteger por ecologistas, e de campos domesticados para segundas residências pitorescas, as Marílias de Dirceu de hoje que a televisão às vezes descobre – na vegetação luxuriante da Colômbia, em escarpas semi-áridas da Calábria – podem ser filhas de pais incestuosos, manas assim dos seus próprios filhos, tudo escondido, durante anos pelas famílias, do zelo metediço de padres ou magistrados, habituados a costumes mais urbanos. Em França, onde o orçamento da União Europeia (UE) – isto é, o dinheiro de nós todos – conserva o campo com o cuidado escrupuloso com que a UNESCO deveria conservar Veneza, um outro mito antigo, que o campo dá de comer à cidade, está há cinquenta anos a ser desmontado aos olhos de toda a gente. Sem a ajuda da Política Agrícola Comum (PAC) da UE, os agricultores europeus de hoje já teriam mudado de vida (ou de culturas), batidos por concorrência do resto do mundo. Trava-se à roda deste vasto problema uma antiga e complexa discussão e o argumento que sustenta a necessidade – melhor, a vantagem – de garantir, através da PAC, a alta qualidade dos produtos agrícolas e o estado impecável da natureza tem o seu mérito e é admiravelmente demonstrado em França. O que não se pode é continuar a dizer que o campo (o nosso campo) dá de comer às (nossas) cidades. É o contrário, a não ser no mais literal dos sentidos e esquecendo, como se não tivesse importância, a economia do sistema.
     Por estas e outras razões as cidades foram ganhando aos campos em atracção e nas vantagens comparativas que oferecem a quem nelas viva. Em muitas partes do mundo de hoje as áreas urbanas continuam a crescer, contendo gente que lá arriba na miragem das luzes da cidade porque está convencida, com razão, que aí encontrará vida melhor do que a que leva na sua parvónia. Algumas dessas aglomerações, como agora se diz, encontram-se no mundo desenvolvido e as condições de vida, mesmo nas partes mais periféricas e pobres delas, são ainda imagi-náveis por europeus habituados às amenidades do estado social desde o berço até à cova e a regulamentos urbanos que lhes protegem o meio ambiente. É, por exemplo, o caso da maior de todas elas segundo uma tabela da ONU, Tóquio, com 34 milhões de habitantes e a crescer; ou da terceira, Nova Iorque, com 20; ou da décima, Osaka-Kobe-Quioto, com 17; ou da décima terceira, Los Angeles, com 15; ou da vigésima quinta, Chicago, com nove – para não falar das três primeiras europeias a figurar na tabela: a vigésima segunda, Paris, com dez milhões; a vigésima sétima, Londres, com oito; e a trigésima sexta, Essen-Düsseldorf, com sete.
     Em partes menos afortunadas do mundo, as condições de vida nos subúrbios mais pobres das grandes aglomerações ultrapassam em miséria, desconforto e insalubridade o que uma imaginação europeia seria capaz de empreender se viagens fáceis e cinemas a cada esquina lhe não fossem dando, há algumas décadas, balizas e estímulos para novas fantasias.
     (O filme Quem quer ser bilionário? é exemplo recente, a mostrar triunfalmente em som e cor a glória explosiva, balzaquiana na mistura de energia, bem e mal, dos bairros de lata de Mumbai – cidade que, quando fazia parte do dote que em 1662 D. Catarina de Bragança levou ao noivo inglês, o Rei Carlos II, se chamava Bombaim.)
     Em Joanesburgo, quadragésima quarta na tabela da ONU, com seis milhões de habitantes, antes e depois do fim do regime do apartheid e do estabelecimento de democracia parlamentar pelo sufrágio universal, homens e mulheres havia e há que vêm de manhã trabalhar na cidade e voltam à noite, não a casa, que não têm, ou a quarto alugado, cuja renda não seriam capazes de pagar, mas a bocado de terra baldia alguns quilómetros fora, que deixaram marcado por uma pedra, com dimensões que dêem para nele se deitarem, ao relento ou mal tapados, a retemperarem forças para o dia seguinte. Mas é melhor viver assim a viver no campo de onde vieram, onde ou não tinham terra ou a que tinham não chegava para toda a família e onde passavam mais fome do que passam agora.
O fenómeno é geral. Em Jacarta – a segunda maior aglomeração urbana do mundo (pelo critério da ONU, que nela inclui várias cidades praticamente pegadas, tratadas separadamente para fins estatísticos por outras entidades), habitada por quase vinte e dois milhões –, enquanto a parte sul do território é alcantilada e marcada por muitas colinas, uma grande parte do território norte é de planície, poucos metros acima do nível do mar, e as cheias são aí frequentes, de maior ou menor gravidade segundo a quantidade de chuva. Uma cheia no passado mês de Março foi particularmente severa, atraindo jornalistas europeus e americanos que, apesar de terem experiência da região, ficaram impressionados pela magnitude do desastre. Muitas das vítimas da cheia, que nela perderam tudo – era pouco, mas era o que elas tinham –, era exactamente gente vinda do campo tentar a sua sorte na cidade onde tencionava continuar depois de recompor as habitações onde vivia, que a cheia deixara meias desfeitas, arruinadas pela água, sujas de lama da rua e de excremento de esgotos rebentados na enxurrada. Espectáculo tão desanimador levou jornalistas a perguntarem às vítimas se não seria melhor desistirem de Ja-carta do que recomeçarem outra vez do nada. As respostas das pessoas interrogadas, impressas em alguns jornais ocidentais e transmitidas com interpretação por algumas rádios, não variaram no seu teor: iriam ficar na cidade e tornar a fazer lá as suas vidas, a partir do que lhes tivesse sobrado da calamidade, por muito pouco que fosse, porque uma ocupação ou outra iriam arranjando para recomeçarem a ganhar e a poupar dinheiro. As aldeias do interior de onde tinham vindo continuavam a ser incapazes de lhes dar qualquer oportunidade de sobrevivência que os tirasse da cepa torta miserável do seu viver. As luzes da cidade à sua frente continuavam acesas – e o campo deixado para trás era ainda o mesmo buraco negro.
     Quando, há mais de quarenta anos, preparava o livro para cujo título procurei em vão uma expressão de Shakespeare glorificadora da vida no campo, conheci camponeses alentejanos com família fora. Em Lisboa, pouca; mais em Almada, devido ao estabelecimento recente da siderurgia; mais ainda em cidades francesas onde um surto sustentado de construção civil animava Les Trente Glorieuses. Lembro-me de uma pequenina ao colo da mãeque não falava ainda. Iriam depois ter com pai e marido a Tours; ele partira à frente, como geralmente acontecia, a explorar o lugar e a preparar a chegada futura dos seus (suas). “O que é que o papá foi buscar a França?”, perguntava a mãe à filha, diante de gente de fora para mostrar a habilidade da petiza. Esta soerguia o braço direito com um sorriso e esfregava polegar e indicador, no gesto indicador de dinheiro.
     O que era, efectivamente, o caso. Onde há cidades, pois, há dinheiro e há trabalho por ele pago.
O crescimento económico dos últimos anos tem sido acompanhado por aumento do tamanho das cidades, às vezes mons-truoso de aparência (a extrema pobreza e a extrema riqueza, disse o escritor inglês V. S. Pritchett, têm uma coisa em comum: assustam ambas à primeira vista – e as duas coincidem hoje em muitas partes do mundo). Não só, de resto, nos países que até há dois anos conheceram números dígitos nas suas taxas de crescimento. A recessão mundial vai devolver muita gente ao campo (já está a acontecer na China) e como, nesse sentido inverso, a viagem é feita a contragosto, iremos ver, aqui e além, balbúrdia e desacato. Mas as traves mestras permanecem: onde há cidades há dinheiro e à roda delas há gente que quer ir para lá.
     E se agora há menos por causa da crise, isso não fará mudar gostos, ambições e ideais das pessoas candidatas a prosperidade, que são quase todas. Mesmo em lugares onde cultos messiânicos e milenários de inspiração cristã têm hoje fiéis, não vejo movimentos de massas que rejeitem este mundo material, como o quiseram rejeitar os heréticos cátaros do Languedoque medieval ou, no século XIX, os seguidores de António Conselheiro na cidade brasileira de Canudos. Acabaram todos, de resto, de morte macaca.
     Há, evidentemente, outras maneiras de olhar para o tema “A cidade e a acumulação de riqueza” e vou acabar dando exemplo de uma, tirada da primeira cena do primeiro acto da peça Los Interesses Creados do dramaturgo espanhol Jacinto Benavente, Prémio Nobel da Literatura de 1922, publicada em Madrid em 1907. Passa-se no fim da Idade Média e os dois protagonistas, o patrão, Leandro, fidalgo, bem parecido e não muito esperto, e o seu criado, Crispin, plebeu, tosco de aparência mas fino como um coral, vivem de expedientes e chegam a uma cidade onde a justiça não os conhece ainda porque nunca lá estiveram. Cito-os no original, acabados de entrar no palco pela esquerda baixa.


LEANDRO
  Gran ciudad há de ser esta, Crispin; en todo se advierte su señorio y riqueza.

CRISPIN
  Dos ciudades hay.
    Quisera el Cielo que en la mejor hayamos dado!

LEANDRO
  Dos ciudades dices, Crispin?
    Ya entiendo, antigua y nueva, una de cada parte del rio.

CRISPIN
  Que importa el rio ni la vejez ni la novedad?
 
Digo dos ciudades como en toda ciudad del mundo:
      una para el que llega con dinero, y otra para el que llega como nosotros.

Já passou quase um século sobre a estreia da peça mais celebrada de Benavente; travaram-se grandes guerras, quentes e frias, com milhões de mortos; sobre maneiras de criar e distribuir riqueza, as cidades não pararam de crescer. E muitos Leandros e Crispins – uns mais sérios do que os outros – continuam a aperfeiçoar a arte de acumular riqueza. |


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